"O artista é o viajante feliz que, após ter longamente navegado sobre as águas da dúvida, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra!"

(Mikel Dufrenne)

quarta-feira, 20 de maio de 2009

Poema, de Ana Carolina Bianco Amaral.

pães

o dia se inicia mudo
morre calado.
esteiras apócrifas estalam no possível entardecer.
a ilusão matinal cheira a centeio
traz as velhas lembranças do pesadelo polido de ontem
o ritmo dos meus pés descalça meu coração
morto selvagem a artéria equilibra meus óculos
sem fundamentos, todo nascimento gera a morte
plantemos o trigo.


Conto, de Ana Carolina Bianco Amaral.
fotografia

sentada na velha cadeira de vime escuro centeio observo o pequeno objeto abstrato que vinha debaixo da velha porta grafite. Seu reflexo instantâneo surtia devaneio nas minhas íris amarelas amendoadas. Um caminho para a descoberta, o destino e a morte.
Vire-me monstruosamente e observei insetos dos quais designo peçonhentos. Não que uma humilde barata possuísse veneno letal, mas a morte impactante entre suas entranhas e meus óculos esfumaçados era digna de alcova campestre. Num determinado período hesitei entre o spray em droga e o chinelo. A noite era morna e adocicada, a ânsia translúcida me aludia covardemente. As chinelas de domingo me pareciam, nesse advento, inferiores aos meus pés, desisti de calçá-las.
Covarde de mim, covarde de mim. A luz tentava parir sua candura, somente o escuro me adornava. Um atroz arrepio percorria meu corpo frouxo, polido. Sentia minhas unhas rouxear-se num convento inaudito do meu desespero. Minha pele sempre albina copulava negra com o espaço congênito do meu quarto. As irmãs íris, outrora amarelas, cogitavam-me outro segredo inconfessável. A transformação começara. As veias, tão azuis, saltavam dos meus labirintos. Meus lábios apeteciam num tom róseo ruge de natal. Os cabelos se desprendiam, automáticos, do laço de fita e banhavam, rouxos, meu lombo. Aludida com os tortuosos desejos imaculados, fixei-me na sombra. Colinas suíças debatiam no estômago que se rasgava em meu ser. Dor pungente meia da calça. Peremptório suor hidratava a pele negra. Somente um pensamento “de agora então serei barata”. A mutação terminara. Ao acender a luz, o espelho selou minha fisionomia. Por detrás da sombra murcha daquela velha porta, minhas antenas captavam o estrelado do céu. Pegajosa me continha na minha condição. Virei-me. Por detrás daquele reposteiro sombrio e ensolarado estava o rosto de uma doce menina, e no chão, uma fotografia rasgada da mesma face.

Ana Carolina Bianco Amaral.

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