"O artista é o viajante feliz que, após ter longamente navegado sobre as águas da dúvida, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra!"

(Mikel Dufrenne)

quarta-feira, 6 de maio de 2009

DEPOIMENTO

Pessoal, aqui segue um relato de como me apaixonei pela leitura. Como nunca contei isso a ninguém, resolvi compartilhar com vocês:

Aos 7 anos de idade, morava numa fazenda aqui da região de Ribeirão Preto chamada Santa Mônica, e a escola onde estudaria ficava no Córrego Grande, uma outra fazenda vizinha. Eu, meu irmão e dois vizinhos andávamos mais ou menos um quilômetro e meio a pé e esperávamos na beira da estrada pela professora que vinha de Cravinhos; ela nos pegava com sua Brasília e então descíamos até a escola. No primeiro dia, tomei leite tão depressa que minha irmã até se assustou; é que eu estava entusiasmado à espera desse mundo novo que se descortinaria. No começo, achei que não conseguiria aprender, as letras me vinham como códigos indecifráveis; elas eram muitas, e eu pouco. A cartilha “No Reino da Alegria” trazia aquele sistema tradicional de junção silábica, e eu tinha medo dessas letras que se uniam a outras para formarem palavras. Nos primeiros dias, minha mãe me perguntava se eu estava aprendendo, e eu dizia que sim, pois não queria decepcioná-la. Certo dia, como numa epifania, consegui ler a primeira lição da cartilha, e percebi que o mesmo sistema utilizado para a formação de uma sílaba era utilizado para outra; dessa forma, compreendi que bastava identificar a sonoridade da consoante para saber pronunciá-la com qualquer vogal. A descoberta foi tão repentina que numa tarde, andando na carroça da fazenda com meu irmão e com a cartilha entre os joelhos, pude lê-la quase por inteiro, para espanto dele e de mim mesmo. Eu estava maravilhado; já não eram apenas letras que entravam pelos meus olhos, mas palavras inteiras, frases completas. Eu não conseguia parar de ler. Meus irmãos me pediam o tempo todo para ler, inclusive letreiros que apareciam em produtos e anúncios. Descobrindo a palavra, eu descobria um universo de possibilidades. E como isso me satisfazia! Um ano depois, estando na segunda série do grupo, outra professora nos pegava (agora era com um Fusca branco) e nos levava até o Córrego Grande. Eu sentia falta de ler outras coisas, a cartilha não me bastava e eu me cansava dela. Nós não tínhamos livros; apesar de alfabetizados, meus pais e meus irmãos não manifestavam interesse por leituras. Foi então que desenterraram lá em casa uma Bíblia do Novo Testamento que uma ex-professora do meu irmão havia nos vendido quando morávamos em outra fazenda. Belica – assim ela era chamada –, muito religiosa, quisera, na ocasião, que a família de cada aluno portasse uma Bíblia. Comecei a lê-la às tardes e à noite. Porém, eu não a lia com interesse religioso, o que me encantava nela era a narrativa em si, a história de um personagem chamado Jesus Cristo e sua trajetória de vida. Eu criava imagens mentais, devorava as páginas e acompanhava o enredo com expectativa. Meu interesse pela Bíblia era ficcional, eu não pensava na veracidade do que lia, e isso nem me interessava. Foi dessa forma que descobri meu gosto por “estórias”. No ano seguinte, quando acabava de completar 9 anos, nós nos mudamos para Cravinhos, e pela primeira vez eu estudaria numa sala com muitos alunos, numa escola grande... e tudo era realmente grande demais, assustador, a ponto de eu não querer mais ficar na escola. Minha mãe me transferiu, então, para o colégio onde meu irmão estudava, lá eu me sentiria mais seguro. Descobri logo que havia uma biblioteca na cidade, e eu fui até lá para conhecê-la. A primeira vez que entrei foi inesquecível, eram muitos livros olhando para mim distribuídos em prateleiras várias, eu nunca tinha visto outro livro que não fosse a tal Bíblia sagrada ou a cartilha. Timidamente, percorri os corredores. Sentia um cheiro de papel envelhecido que brotava do fundo dos livros; eu os pegava nas mãos, abria suas páginas – muitas até amarelecidas – e ficava folheando-as, embebido pelas novas estórias que surgiam através delas. Era muito difícil decidir pelo livro que queria ler; acho que se pudesse, leria todos de uma só vez. Eu levava para casa livros de Maria José Dupré, Pedro Bandeira, Clarice Lispector, e até de escritores estrangeiros que eram traduzidos no Brasil. Tinha uma semana para devolvê-los, porém antes do prazo eu já os trazia de volta. Confesso que ficava um tanto envergonhado, pois a bibliotecária – uma senhora um pouco gorda, de cor clara e cabelos louros – me via chegar e mostrava um breve e simpático sorriso, como quem diz: “Olha ele aí de novo!”. Eu não conseguia ficar uma semana sem aparecer por lá, pegava um livro já sabendo o que queria para a semana seguinte. Os livros ficavam me esperando, queriam ser lidos por mim, e eu tinha o tempo todo do mundo para saboreá-los. Em casa, enquanto lia um, deixava outro à espera, e isso me causava certa euforia, era um encantamento só com a idéia de que havia outro por ali, sobre a mesa, sobre o sofá, sobre a cama... Eu me deparava com eles, às vezes por querer, outras vezes sem querer, e eu me espantava de vê-los assim, era como uma refeição deliciosa que esperava para ser deglutida, de forma que só de vê-la já ficamos com aquela sensação de água na boca. Esses sentimentos eram a minha “felicidade clandestina”, tal qual eu li muitos anos mais tarde no conto “Felicidade clandestina”, de Clarice Lispector. Nunca mais parei de ler. Acho que quem descobre o encantamento da palavra não consegue se divorciar dela. Meus livros foram meus maiores amigos da infância, com eles eu pude viajar por múltiplos caminhos apenas deitado em minha cama ou na poltrona da sala, eles me permitiram desenvolver a capacidade de introspecção, tão rara às crianças e adolescentes de nosso tempo. Até hoje, quando vou a uma livraria, perco-me no tempo e fico folheando as páginas dos livros, sentindo o cheiro que brota delas, encantado com o mundo que jorra dali. Nestes momentos, percebo em mim a presença daquele menino de 7 anos que, por falta de livros, encantava-se com a narrativa bíblica e depois sentia o perfume dos livros velhos e amarelos da biblioteca que lhe abriam o universo da imaginação. (Alexandre de Melo Andrade)