"O artista é o viajante feliz que, após ter longamente navegado sobre as águas da dúvida, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra!"

(Mikel Dufrenne)

sábado, 12 de julho de 2008

UM ANDARILHO NA CONTRAMÃO: CONSTATAÇÃO DA REALIDADE E IRONIA EM ÁLVARES DE AZEVEDO



Alexandre de Melo Andrade
Doutorando em Estudos Literários pela UNESP - Araraquara
Texto publicado na Revista FOCO - número 13/2005 e na Revista ESTAÇÃO LITERÁRIA da Universidade de Londrina - volume 1/2008

RESUMO

Álvares de Azevedo teve importância extrema no Romantismo brasileiro, pois melhor que produzir poemas ultra-românticos, em que prevalece a temática do amor e do sonho, revestiu sua obra de um prosaísmo que acentua a perda da ingenuidade e a constatação de um mundo em desordem, que privilegia os aspectos materiais da existência.
O trabalho visa à abordagem dessa lira humorística, por meio da análise do poema Vagabundo, da segunda parte da “Lira dos Vinte Anos”, buscando os elementos que melhor nos sirvam para mostrar o descontentamento do sujeito-lírico mediante a realidade desprezível em que os homens estão inseridos.

PALAVRAS-CHAVE: humor, prosaísmo, realismo, desordem.


I- INTRODUÇÃO

Manuel Antônio Álvares de Azevedo, poeta romântico que melhor representeou o byronismo no Brasil, ofereceu-nos uma visão da poesia que transcende e rebaixa a condição humana ao dividir sua Lira dos Vinte Anos em três partes.
A primeira parte abriga poemas que elevam o sujeito-lírico a uma atmosfera carregada de sentimentalismo, de perfumes e cores, onde as formas são fluídicas e vaporosas, o que corresponde ao devaneio lírico e à imaginação criadora. A essa lira sentimental chamamos de “plano vertical”, levando em conta que nesse aspecto de sua poesia, Álvares de Azevedo busca transcender os elementos da natureza, elevando-os à condição espiritual e buscando a satisfação d’alma no infinito do universo. A terceira parte é tida como uma continuação desta abordagem.
Por outro lado, a segunda parte da obra busca elementos prosaicos que projetam a condição do desajuste do sujeito-lírico no mundo real, concreto e degradante. Aqui, as marcas da civilização causam repulsa e o poeta zomba de um mundo que privilegia o dinheiro, o falso moralismo e o materialismo; e para isso, faz uso de uma ironia amarga e de um sarcasmo impiedoso. A essa lira humorística, chamamos de “plano horizontal”, entendendo que nesse aspecto da poesia azevediana o sujeito-lírico anda pelas ruas e constata as mazelas físicas e morais de uma sociedade deprimente e corrupta.
Lembremos que essa dualidade de abordagem temática foi referida pelo próprio poeta da seguinte forma:

É que a unidade deste livro funda-se numa binomia. Duas almas que moram nas cavernas de um cérebro pouco mais ou menos de poeta escreveram esse livro, verdadeira medalha de duas faces. (AZEVEDO, 2000, p. 190)

Essa “binomia” a que o próprio autor se refere era um dos pressupostos da escola romântica, que valorizou o contraste entre o sublime e o grotesco, conforme teoria estabelecida por Victor Hugo. Segundo o crítico, “... o sublime sobre o sublime, dificilmente produz um contraste, e tem-se necessidade de descansar, até do belo” (HUGO, 1988, p. 31). A lira humorística surge, então, como distensionamento da consciência lírica, desabafo de um “eu” ressentido com o contexto social vigente.



II- O MUNDO SEM O VÉU DA TRANSCENDÊNCIA

Faremos análise de uma poesia da segunda parte da Lira dos Vinte Anos, numa tentativa de desvendar as marcas de recusa à realidade tangível, projetadas no texto por meio da troça, do sarcasmo e da ironia.

VAGABUNDO

Eu durmo e vivo ao sol como um cigano,
Fumando meu cigarro vaporoso;
Nas noites de verão namoro estrelas;
Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!

Ando roto, sem bolsos nem dinheiro;
Mas tenho na viola uma riqueza:
Canto à lua de noite serenatas,
E quem vive de amor não tem pobreza.

Não invejo ninguém, nem ouço a raiva
Nas cavernas do peito, sufocante,
Quando à noite na treva em mim se entornam
Os reflexos do baile fascinante.

Namoro e sou feliz nos meus amores;
Sou garboso e rapaz... uma criada
Abrasada de amor por um soneto
Já um beijo me deu subindo a escada...

Oito dias lá vão que ando cismado
Na donzela que ali defronte mora.
Ela ao ver-me sorri tão docemente!
Desconfio que a moça me namora!...

Tenho por palácio as longas ruas;
Passeio a gosto e durmo sem temores;
Quando bebo, sou rei como um poeta,
E o vinho faz sonhar com os amores.

O degrau das igrejas é meu trono,
Minha pátria é o vento que respiro,
Minha mãe é a lua macilenta,
E a preguiça a mulher por quem suspiro.

Escrevo nas paredes as minhas rimas,
De painéis a carvão adorno a rua;
Como as aves do céu e as flores puras
Abro meu peito ao sol e durmo à lua.

Sinto-me um coração de Lazzaroni;
Sou filho do calor, odeio o frio;
Não creio no diabo nem nos santos...
Rezo a Nossa Senhora, e sou vadio!

Ora, se por aí alguma bela
Bem doirada e amante da preguiça
Quiser a nívea mão unir à minha
Há de achar-me na Sé, domingo, à Missa.
(AZEVEDO, 2000, p. 233)


Aqui fica nítida a poesia que trava relações entre o eu-lírico e a sociedade vigente; não há um mergulho em si como busca de um universo supra-real, mas revelam-se traços de uma sociedade desarmônica e de idéias superficiais. Aliás, essa realidade é a que mostra ser vigente aos olhos do poeta; ele cria dois universos distintos em sua Lira, ambos expressos sob a visão do sujeito-lírico e que nos impregna de impressões, ora de subjetividade e transcendência, ora de objetividade e repelência.
O poeta mostra o perfil do que se encontra num caminhar por entre os objetos e as pessoas; trata-se de um plano horizontal, onde se constata o universo sensível com que se depara após a expulsão do paraíso e a queda na terra.
Nos primeiros poemas da Lira, notava-se que a lua sempre despontava nos cenários, derramando sua sensualidade e seus mistérios sobre os sentimentos do poeta, e prateando os objetos de forma que atingissem um aspecto difuso e espiritual, conforme se observa na estrofe abaixo, de No Mar:

E que noite! que luar!
E que ardentias no mar
E que perfumes no vento!
Que vida que se bebia
Na noite que parecia
Suspirar de sentimento!
(AZEVEDO, 2000, p. 121)

Agora, o sol surge para descortinar toda a realidade; tudo se torna visível, aparente, nítido e sem disfarces. Não há mais os ardores que elevavam o devaneio lírico a uma progressão ilimitada, mas uma crua constatação dos objetos e da humanidade em sua mais total frieza. Enquanto a noite valoriza a inspiração, o dia revela-se insensível e abriga um pensamento capitalista.
O poeta ironiza, muitas vezes, sua condição perante a sociedade, que passou a valorizar os setores de produção com o advento da Revolução Industrial e chocou, segundo a forma como expõe no texto, sua sensibilidade. Ele se posiciona numa situação de contra-mão ao pregar a inspiração e a natureza num mundo em que a industrialização iniciou um esfriamento de tensões interiores para abraçar o pensamento racional, capitalista e objetivista.
No poema em análise, o poeta contrapõe sua condição de boêmio e descompromissado a um universo que valoriza o dinheiro, a concorrência e o falso moralismo. O título já revela sua excentricidade por distanciar-se do núcleo comum das ações corriqueiras, numa ironia que desperta seu cinismo para com o materialismo desenfreado que aborda o pensamento da época.
Logo no primeiro verso há uma auto-afirmação de um eu que vive “ao sol como um cigano”. Existe aí uma marca importante de transitoriedade: o sujeito-lírico não se encontra numa situação-local específica; ele passa pelos objetos, dá voltas pelo mundo, vaga por entre as pessoas como um cigano. Não há mais o recorte de um momento de êxtase, mas o desapego do mundo por meio da abrangência do todo, sem se deter em momentos de intensa subjetividade. Viver ao sol como um cigano indica, dessa forma, constatar a realidade sem se interessar por ela, tornar descartável tudo que faz parte dela. Ele dá mais importância ao seu cigarro vaporoso e às estrelas, pois são elementos que lhe proporcionam viver na excentricidade de uma vida boêmia.
“Sou pobre, sou mendigo, sou ditoso!”. Aqui o poeta contrapõe o materialismo e a ventura, ou seja, pode até não ser rico e viver às soltas, mas gosta de sua liberdade. O estado de vagabundice é visto, então, como aspecto positivo sob a trama da ironia, que denuncia a riqueza material por roubar a alma dos homens, escravos do materialismo. Mais abaixo ele reafirma sua condição de miserável (“Ando roto, sem bolsos nem dinheiro”) e novamente valoriza essa condição quando conclui que “quem vive de amor não tem pobreza”. O andar roto e sem dinheiro condiz com a realidade, enquanto que o amor condiz com a noite, ou seja, o materialismo está para o sol da mesma forma que o amor está para a lua. Ademais, ao citar sua condição precária, ele diz que anda, e quando cita o amor sobre a pobreza, ele diz que canta. Então, o andar indica um movimento de repetição, de monotonia e prosaísmo, ao passo que o cantar indica a flexibilidade, a inspiração, a elevação, a poesia... Esse confronto nos remete a uma das principais propostas do Romantismo, que foi a liberdade de expressão e a liberação dos sentimentos profundos.
A constatação de que o dinheiro afasta as pessoas de sua individualidade e as torna dependentes das frias relações comerciais faz dele um tipo irônico, que se nega a participar do todo e ri do mundo ao seu redor. Sob esse ponto de vista “... o dinheiro passa a ser visto como um passaporte da sobrevivência de todos quantos circulam no mundo venal e indiferente às dores individuais.” (SANTOS, 2000, p. 105)
Ao dizer “Não invejo ninguém, nem ouço a raiva”, o poeta denuncia a intriga e o sentimento mesquinho que preenchem a alma das pessoas, colocando-se como mero observador da sociedade a partir de sua própria exclusão dela. Ele se torna imune a esses sentimentos “baixos” tomando como proteção a noite, quando nele “... se entornam / os reflexos do baile fascinante”. Novamente há um confronto entre a razão e a emoção, marcada pela presença da noite, que tudo apaga. Aliás, inveja e raiva são emoções negativas que implicam sempre um ou mais interlocutores numa situação de conflito, ao passo que a inspiração da noite implica apenas o despertar da imaginação de um ser inspirado.
Nessa sua existência aventureira, ele afirma ter amores, ser “garboso e rapaz”. É interessante observar que nessa vertente de sua poesia, Álvares de Azevedo expõe um sujeito-lírico que se auto-descreve, como se observa nos versos:

“Sou pobre, sou mendigo, e sou ditoso!”
“Ando roto, sem bolsos nem dinheiro”
“Sou garboso e rapaz...”
“... sou rei como um poeta”

e sustenta suas qualidades de forma a achar-se arrojado e galante, em oposição a um eu que outrora suplicava pelo amor de uma dama e a ela referia-se descritivamente.
Em “Oito dias lá vão”, ele instaura um marco temporal que situa seu momento presente, o que denota um tom prosaico e narrativo. Os verbos no presente também revelam continuidade de ações que vão acontecendo com o passar do tempo, em aparente despreocupação com o “instante sublime”; é como se tudo e todos que passam por ele não lhe causassem apego nem fossem importantes para continuarem a fazer parte de sua vida. Dessa forma, ora ele rouba um beijo da criada, ora se encanta com a vizinha que lhe sorri docemente...
Esse desapego a elementos da vida concreta aparece mais tarde em Manuel Bandeira, não de forma a estar preso ao presente, mas como um passado glorioso do qual o eu-lírico se lembra e se sente satisfeito. Observe-se:


Poema só para Jaime Ovalle

Quando hoje acordei, ainda fazia escuro
(Embora a manhã estivesse avançada).
Chovia.
Chovia uma triste chuva de resignação
Como contraste e consolo ao calor tempestuoso da noite.
Então me levantei.
Bebi um café que eu mesmo preparei,
Depois me deitei novamente, acendi um cigarro e fiquei pensando...
- Humildemente pensando na vida e nas mulheres que amei.
(BANDEIRA, 1974, p. 273)

Tem-se a impressão de que aquele “eu” adolescente de “Vagabundo” é esse sujeito amadurecido que aparece na poesia acima de Manuel Bandeira. Percebemos que surge aí o cigarro no momento em que o eu-poético põe-se a pensar nas mulheres que amara, atingindo o mesmo efeito de sublimação, fugacidade e diluição do ambiente concreto; mas a fuga acontece apenas pela memória, e não pelas ações inconseqüentes vistas no poema do autor da Lira.
Tanto a lira sentimental como a lira humorística de Álvares de Azevedo são expressas, freqüentemente, num momento presente, o que contribui para a espontaneidade da euforia desenfreada das lágrimas, do desejo, das ações e do riso amargo. Toda essa euforia, no poema de Bandeira, é suspensa pelo efeito memorialístico produzido, em que as ações do passado não são ditas, mas lembradas com humildade e satisfação. Aliás, há aqui uma poesia ainda mais desprovida de recursos formais, revelando despojamento, despreocupação e ausência de tensão.
No verso que abre a sexta estrofe de “Vagabundo”, as longas ruas que o poeta afirma serem seu palácio mostram novamente a horizontalidade de seu percurso, num movimento de constatação e abandono dos objetos próximos. Ele passeia a gosto, ou seja, não tensiona sua mente por não deixá-la atentar-se aos elementos que lhe causam repulsa. Há uma seqüência de elementos da vida real de que o poeta se apropria para caracterizar sua vida boêmia, como o cigarro que lhe satisfaz o vício; os namoros descartáveis que lhe trazem alegria, prazer e jovialidade; as ruas, por onde transita entregue à própria sorte... O epicurismo torna-se, então, uma característica marcante nesse momento da poesia azevediana, o que se completa com o vinho, aparente no final dessa estrofe. A bebida traz a sensação de leveza e elevação de que precisa para integrar-se a um universo fantasioso e imaginário, longe da civilização.
“Quando bebo, sou rei como um poeta”. Aqui ele retoma a coroação que o vinho lhe proporciona, remontando o pensamento de Macário quando diz que “... o vinho faz do príncipe um poeta e do poeta um príncipe” (AZEVEDO, 2000, p. 527). Repare-se que, ao entrar na estalagem, na primeira cena do drama, Macário pede à dona que lhe prepare cama, ceia, charuto e

“Sobretudo não esqueçam o vinho!
UMA VOZ.
Há aguardente unicamente, mas boa.
MACÁRIO.
Aguardente! Pensas que sou algum jornaleiro?... Andar seis léguas e sentir-se com a goela seca! oh! mulher maldita!...”
(AZEVEDO, 2000, p. 510)

O vinho traz o sossego dos pensamentos, o distensionamento dos ânimos, a elevação dos sentimentos e “faz sonhar com os amores”. Dessa forma, instala-se a concepção byroniana de poesia, buscando-se no vinho a inspiração dos versos, conforme se observa também numa passagem do canto XXVI em O Poema do Frade, quando o frade refere-se ao poeta do qual conta a história:

Só quando o fogo do licor corria
Da fronte no palor que avermelhava,
Com as convulsas mãos a taça enchia,
Então a inspiração lhe afervorava
E do vinho no eflúvio e nos ressábios
Vinha o fogo do gênio à flor dos lábios!
(AZEVEDO, 2000, p. 325)

É curioso perceber também, no trecho acima de Macário, que há um dado europeizante fornecido pela recusa à aguardente, sendo uma bebida tipicamente brasileira. A fuga se instaura, como nesse contexto, por meio da não aceitação de elementos nacionais em favor de um requinte estrangeiro. Além dessa relação, é importante ressaltar novamente que o vinho se liga a várias conotações que sugerem sublimação, libertação e divagação.
Na sétima estrofe, há uma seqüência de metáforas que ressoam desde o seu ceticismo até seu mais total despojamento. O poeta dessacraliza a igreja ao considerar como trono seu degrau e desengaja-se do movimento histórico numa atitude anti-nacionalista ao fazer de sua pátria o vento que respira. Existe um sentimento de rompimento com as instituições que nega sua participação social e o torna aquém da realidade descortinada à sua frente. Isso acontece por meio da troça, do olhar irônico que lança ao mundo; ele zomba da crença das pessoas, torna frágil a religiosidade (já que ela inibe os desejos dos homens), e mostra-se satisfeito em sua “desordem”.
Mas vejamos que na estrofe seguinte há uma atitude que revela sua preocupação em marcar sua presença na memória dos homens. Ele escreve suas rimas nas paredes e adorna as ruas com carvão; trata-se de uma imagem que agride a realidade dos homens, penetra seu cotidiano e os faz enxergar que há um movimento de revolta. Na verdade, as rimas nas paredes e a marca do carvão nas ruas revelam uma oposição radicalizada por um sujeito dotado de sensibilidade e insatisfeito com o quadro de imagens frias e cruas com o qual se depara diariamente. Percebe-se, então, que a negação de sua participação histórico-social exposta até então acaba por lançar-lhe a uma rebeldia que o faz agredir a objetividade e o racionalismo social por meio de ações que afirmam seu descontentamento. Dessa forma, ao ignorar a realidade dos homens e andar na contra-mão dos princípios vigentes, o poeta já assume uma posição de agente social.
Nas duas últimas estrofes, há uma ironia que se produz na temática religiosa, repercutindo numa visão sarcástica do culto aos santos e da prática religiosa.

“Não creio no diabo nem nos santos
Rezo a Nossa Senhora, e sou vadio!”

Primeiramente, ele nega qualquer crença, depois afirma rezar à Nossa Senhora, e em seguida contradiz sua oração por afirmar-se vadio. Esse movimento de afirmação e negação leva a uma ironia que arranha os princípios cristãos e acentua seu desacordo com o mundo. E o que torna mais risível essa contradição é o fato de ele ser assíduo à Missa, conforme se observa quando diz que se uma bela quiser unir a mão à sua, há de encontrá-lo na Sé, domingo, à hora da Missa. Mas percebemos que essa mulher deve ser também amante da preguiça, ou seja, possuir os mesmos traços da personalidade dele. Então, não há uma predisposição a mudanças comportamentais que o insiram no contexto social, pois deseja que no futuro sua vida permaneça como sempre fora. Como freqüentador da igreja, ele cumpre uma tarefa social, mas com intenções divergentes, remetendo-nos a personagens de Gil Vicente, que correspondem ao apelo social religioso, mas deturpam o objetivo primeiro da instituição, que é a purificação do ser.



III- CONSIDERAÇÕES FINAIS

Ainda que a poesia da primeira parte da Lira não tenha sido o foco da discussão, é necessário lembrar novamente que a segunda parte da obra é concebida a propósito e com plena consciência do poeta como uma sátira daquela; a elevação de outrora dá lugar a uma visão crítica da realidade nesta.
Essa moeda de faces distintas forma uma unidade; trata-se de duas realidades opostas que, confrontadas, formam um todo. O resultado dessa duplicidade é a ironia, já que se nega um universo subjetivo por meio de seu reverso: um universo em deformação, objetivo e desordenado.
Álvares de Azevedo incorporou em sua poesia, dessa forma, aquilo que já era moda entre os românticos europeus: a ordem natural e a transgressão social. Segundo Octavio Paz,

...Ainda que as paixões corporais ocupem um lugar central na grande literatura libertina do século XVIII, somente nos pré-românticos e nos românticos o corpo começa a falar. E a linguagem que fala é a linguagem dos sonhos, dos símbolos e das metáforas, numa estranha aliança do sagrado com o profano e do sublime com o obsceno. (PAZ, 1984, p. 54)

A ironia nos poemas da segunda parte da Lira revela, além da negação do transcendente e da sátira, a consciência de finitude: fim dos sonhos, fim da noite, morte. O eu-poético de “Vagabundo”, ao andar pelas ruas, percebe a incoerência entre seus sonhos e o mundo real, há nítida dissonância entre seus desejos e o apelo social. Lembremos que Octavio Paz ainda afirma que a ironia “...consiste em inserir dentro da ordem da objetividade a negação da subjetividade” (p. 68) e refere-se aos românticos como aqueles que têm “...predileção pelo grotesco, o horrível, o estranho, o sublime irregular, a estética dos contrários, a aliança entre o riso e o pranto, prosa e poesia, incredulidade e fé...” (p. 69), o que havia sido abordado por Victor Hugo no prefácio de Cromwell, quando elaborou a teoria “Do Grotesco e do Sublime”.
Álvares de Azevedo incorporou essa prática literária dos contrastes em sua poética conscientemente e conseguiu encantar os leitores de sua época e muito mais os que sobrevieram a ele, com uma linguagem ora lacrimejante e suave, ora zombeteira e transgressora.


BIBLIOGRAFIA

ÁLVARES DE AZEVEDO, Manuel Antônio. Obra Completa. Org. Alexei Bueno. Rio de Janeiro: Nova Aguillar, 2000.
ALVES, Cilaine. O Belo e o Disforme: Álvares de Azevedo e a Ironia Romântica. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1998.
BANDEIRA, Manuel. Poesia Completa e Prosa. Rio de Janeiro: José Aguillar Editora, 1974.
BARBOSA, Onédia. C. C. Byron no Brasil: traduções. São Paulo: Ática, 1974.
CAMILO, Vagner. Risos entre pares, poesia e humor românticos. São Paulo: EDUSP/FAPESP, 1997.
CÂNDIDO, Antonio. Álvares de Azevedo ou Ariel e Caliban. In: ______. Formação da Literatura Brasileira (Momentos Decisivos). São Paulo: Itatiaia/Edusp, 1975, vol. 2.
HAUSER, Arnold. História social da arte e da literatura. São Paulo: Martins Fontes, 1995.
HUGO, Victor. Do Grotesco e do Sublime (Prefácio de Cromwell). Trad. Célia Berretini. São Paulo: Perspectiva, 1988.
PAZ, Octavio. Os Filhos do Barro. Trad. Olga Savary. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
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SCHILLER, Friedrich. Poesia ingênua e sentimental. Trad. Márcio Suzuki. São Paulo: Iluminuras, 1991.