"O artista é o viajante feliz que, após ter longamente navegado sobre as águas da dúvida, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra!"

(Mikel Dufrenne)

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

As considerações abaixo, sobre a obra Ensaio sobre a cegueira, de José Saramago, foram feitas por Alan Ponci, aluno do último período do curso de Letras da UNIESP-FABAN.




Agilidade textual, através de recursos pouco ortodoxos, tais como: vírgula em lugar de ponto final. Porém, após a vírgula recomeça-se com letra maiúscula, e só através de contexto é possível notar que se trata da fala de outra personagem, pois o escritor economiza, inutiliza os travessões.


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Ao fim do primeiro capítulo, nenhum nome foi citado, denotando a perda de identidade em meio ao caos urbano; somente o narrador se esmira em traduzir os sentidos, os sentimentos humanos; uma inglória tarefa que beira dizer o indizível.


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A velocidade da narrativa é alucinante, para tentar acompanhar o ritmo frenético da vida contemporânea.



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Perda da noção do tempo, exceto a mulher do médico, que conserva o relógio. Nomes, não. Assumidamente, nomes não importam mais.



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Quando, por ocasião do incêndio, vêem-se livres, sentem falta dos soldados, que os aprisionavam naquele inferno: - foram institucionalizados, ainda mais porque não sabem mais como e o que fazer em liberdade.



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A fé é uma das últimas “coisas” a ser perdida (santos e Jesus vendados).



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Em contrapartida com a cegueira normal, que é negra, esta é branca, esta retira o indivíduo das trevas, já que o branco esclarece, traz à tona uma nova realidade, tão clara que é cega (hiperglaucomia ), desfoca , embaraça.



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O que cega as pessoas?



Essa alegoria é chave para o entendimento crítico da obra: As pessoas vêem o mundo como lhe convêm, isto é, não vêem de fato o mundo como ele é. Temos, senão, uma visão egocêntrica de mundo, pessoas que de tão preocupadas consigo mesmas, com tanto “medo” de cegar, não enxergam que existem outras pessoas com problemas. Aí está o que difere a mulher do médico dos demais: o autoísmo.



Podemos considerar a mesma analogia para avaliar a afirmação da heroína em questão: “Será que chegou a minha vez de cegar?” Faz sentido, pois uma vez que todos voltam a ver, a visão dela não importa mais, estão todos de volta a “seus próprios mundos”.



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Se vivemos num mundo de aparência, onde os indivíduos são enquadrados por suas funções e não por quem são (o médico, o faxineiro, a prostituta), atribuímos os nomes à posição social. Agora, incapacitados, jogados num mesmo hospício (uma utopia de nivelamento social), só lhes restam vagas associações: o 1° cego, o velho da venda preta etc.



Isso porque a ninguém interessou “conhecer” verdadeiramente o próximo, só sua utilidade; o homem é visto como peça em uma máquina, isto é, o capitalismo desumaniza, desconstrói a identidade.

sábado, 7 de novembro de 2009

Antônio Cícero é um dos destaques da crítrica e da produção poética brasileira contemporânea. Uma de suas grandes contribuições é a aproximação que faz entre literatura e filosofia. Abaixo, uma de suas poesias:

GUARDAR

Guardar uma coisa não é escondê-la ou trancá-la.
Em cofre não se guarda coisa alguma.
Em cofre perde-se a coisa à vista.
Guardar uma coisa é olhá-la, fitá-la, mirá-la por
admirá-la, isto é, iluminá-la ou ser por ela iluminado.
Guardar uma coisa é vigiá-la, isto é, fazer vigília por ela,
isto é, velar por ela, isto é, estar acordado por ela,
isto é, estar por ela ou ser por ela.
Por isso melhor se guarda um vôo de um pássaro
do que um pássaro sem vôos.
Por isso se escreve, por isso se diz, por isso se publica,
por isso se declara e declama um poema:
Para guardá-lo:
Para que ele, por sua vez, guarde o que guarda:
Guarde o que quer que guarda um poema:
Por isso o lance do poema:
Por guardar-se o que se quer guardar.
Assim como na tradição metafísica, há na obra de Alexei Bueno (além de ensaísta e crítico de literatura) uma inquietação onipresente entre a carnalidade e o espiritual, dualidade nunca resolvida e subjacente em todas as angústias que disparam seus poemas. Trata-se de uma poesia que se pretende contemporânea, isto é, relativa ao Homem presente e suas aflições terrenas, não apresentando nenhum tipo de escapismo, seja ele utópico ou histórico. O que não significa uma renegação da tradição: para Alexei Bueno, a arte, a grande arte, é sempre universal e a-histórica. Dos gregos à moderna poesia brasileira, importa-lhe mais, tanto na condição de crítico quanto na de poeta, a densidade e a elevação alcançadas por autores e suas obras, fatores que estabelecem a verdadeira habitação do poético. Abaixo, transcrevemos duas poesias desse autor:



HELENA


No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

 
Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

 
Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

 
Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.



VIDÊNCIA

Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

 
Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

 
Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

 
Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que pára o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.