"O artista é o viajante feliz que, após ter longamente navegado sobre as águas da dúvida, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra!"

(Mikel Dufrenne)

sábado, 7 de novembro de 2009

Assim como na tradição metafísica, há na obra de Alexei Bueno (além de ensaísta e crítico de literatura) uma inquietação onipresente entre a carnalidade e o espiritual, dualidade nunca resolvida e subjacente em todas as angústias que disparam seus poemas. Trata-se de uma poesia que se pretende contemporânea, isto é, relativa ao Homem presente e suas aflições terrenas, não apresentando nenhum tipo de escapismo, seja ele utópico ou histórico. O que não significa uma renegação da tradição: para Alexei Bueno, a arte, a grande arte, é sempre universal e a-histórica. Dos gregos à moderna poesia brasileira, importa-lhe mais, tanto na condição de crítico quanto na de poeta, a densidade e a elevação alcançadas por autores e suas obras, fatores que estabelecem a verdadeira habitação do poético. Abaixo, transcrevemos duas poesias desse autor:



HELENA


No cômodo onde Menelau vivera
Bateram. Nada. Helena estava morta.
A última aia a entrar fechou a porta,
Levavam linho, ungüento, âmbar e cera.

Noventa e sete anos. Suas pernas
Eram dois secos galhos recurvados.
Seus seios até o umbigo desdobrados
Cobriam-lhe três hérnias bem externas.

 
Na boca sem um dente os lábios frouxos
Murchavam, ralo pêlo lhe cobria
O sexo que de perto parecia
Um pergaminho antigo de tons roxos.

 
Maquiaram-lhe as pálpebras vincadas,
Compuseram seus ossos quebradiços,
Deram-lhe à boca uns rubores postiços,
Envolveram-na em faixas perfumadas.

 
Então chamas onívoras tragaram
A carne que cindiu tantas vontades.
Quando sua sombra idosa entrou no Hades
As sombras dos heróis todas choraram.



VIDÊNCIA

Se os nossos olhos te enxergassem, rosa,
E não só: “É uma rosa” nos dissessem
Na vulgar gradação que nunca esquecem,
Que epifania na manhã tediosa!

 
Se eles vissem, ao vê-la, cada coisa
E não seu nome, se afinal pudessem
Fugir da furna abstrata onde destecem
A vida, um morto partiria a lousa

 
Maciça de aqui estar. Flor, nuvem, muro,
Árvore, que é uma só e não tal nome,
Se tudo entrasse o corredor escuro

 
Que há em nós, algo de exato se ergueria,
Algo que pára o tempo ou que o consome,
Que alveja a noite e entenebrece o dia.

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