"O artista é o viajante feliz que, após ter longamente navegado sobre as águas da dúvida, nas trevas do esforço, pode, enfim, bradar: terra!"

(Mikel Dufrenne)

sexta-feira, 21 de maio de 2010

Ana Cristina César foi dessas poetas que marcaram a história da poesia brasileira pela intensidade vital de seus versos. Embora estivesse no contexto da Poesia Marginal, ousou uma escrita que, confundida com biografismos, revela uma poesia fragmentária e com tendências contemporâneas. Nascida no Rio de Janeiro em 2 de junho de 1956, a poeta cometeu suicído em 20 de outubro de 1983. Encontrei esses dias o seguinte poema, de Drummond, dedicado a ela:

Ausência



Por muito tempo achei que ausência é falta
E lastimava, ignorante, a falta..
Hoje não a lastimo.
Não há falta na ausência.
Ausência é um estar em mim.
E sinto-a tão pegada, aconchegada nos meus braços
Que rio e danço e invento exclamações alegres.
Porque a ausência, esta ausência assimilada,
Ninguém a rouba mais de mim.


(Carlos Drummond de Andrade – Com o pensamento em Ana Cristina)

domingo, 16 de maio de 2010

Livraria, Café e Cinema


Gosto de passear em shoppings, mas fico pensando o que me atrai neste lugar. Como não sou consumista nem do tipo que aprecia vitrine como se estivesse diante de um copo d'água depois de caminhar muito no deserto, constatei que nunca consigo entrar num deles sem ficar parte do tempo na livraria. Sim, o que há de melhor num shopping é a livraria, onde o consumo vem acompanhado de um acréscimo no conhecimento e um prazer ao espírito. Ainda fiquei pensando que todas as vezes, na saída, paro num café, peço um expresso e fico observando o vai-e-vem de pessoas enquanto me entregam o café e eu o saboreio como quem contempla, com o próprio palato, a vida que acontece à minha volta. E por último, vejo que o cinema me agrada, embora não vá com tanta constância. Livraria, café e cinema... entrelaçados por uma adrenalina aos sentidos e às emoções, embora com a calmaria de quem descobre o prazer em coisas tão ao alcance da mão e dos olhos. Shopping sem livraria, café e cinema seria o lugar mais chato do mundo!

Alexandre de Melo Andrade.

segunda-feira, 10 de maio de 2010

AS TRÊS EXPERIÊNCIAS



Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou a minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. "O amar os outros" é tão vasto que inclui até o perdão para mim mesma com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida . Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca. E nasci para escrever. A palavra é meu domínio sobre o mundo. Eu tive desde a infância várias vocações que me chamavam ardentemente. Uma das vocações era escrever. E não sei por que, foi esta que eu segui. Talvez porque para outras vocações eu precisaria de um longo aprendizado, enquanto que para escrever o aprendizado é a própria vida se vivendo em nós e ao redor de nós. É que não sei estudar. E, para escrever, o único estudo é mesmo escrever. Adestrei-me desde os sete anos de idade para que um dia eu tivesse a língua em meu poder. E no entanto cada vez que eu vou escrever, é como se fosse a primeira vez. Cada livro meu é uma estréia penosa e feliz. Essa capacidade de me renovar toda à medida que o tempo passa é o que eu chamo de viver e escrever. Quanto aos meus filhos, o nascimento deles não foi casual. Eu quis ser mãe. Meus dois filhos foram gerados voluntariamente. Os dois meninos estão aqui, ao meu lado. Eu me orgulho deles, eu me renovo neles, eu acompanho seus sofrimentos e angústias, eu lhes dou o que é possível dar. Se eu não fosse mãe, seria sozinha no mundo. Mas tenho uma descendência, e para eles no futuro eu preparo meu nome dia a dia. Sei que um dia abrirão as asas para o vôo necessário, e eu ficarei sozinha: É fatal, porque a gente não cria os filhos para a gente, nós os criamos para eles mesmos. Quando eu ficar sozinha, estarei seguindo o destino de todas as mulheres. Sempre me restará amar. Escrever é alguma coisa extremamente forte mas que pode me trair e me abandonar: posso um dia sentir que já escrevi o que é meu lote neste mundo e que eu devo aprender também a parar. Em escrever eu não tenho nenhuma garantia. Ao passo que amar eu posso até a hora de morrer. Amar não acaba. É como se o mundo estivesse a minha espera. E eu vou ao encontro do que me espera.
(Clarice Lispector)